sábado, 30 de maio de 2020

Tem que ser selado, registrado, carimbado...no Correio do Fim do Mundo!

Caminhando sobre os cascalhos da enseada Zaratiegui em Isla Redonda avistei a emblemática estrutura retangular de metal sobre uma plataforma de madeira, contrastando com as águas calmas e o céu cinzento daquela tarde de março.

Sim, eu havia chegado a um dos destinos mais desejados por mim: o Correio do Fim do Mundo.
Pode parecer besteira para você, caro leitor, mas para quem tem 17 dos seus 35 anos de vida dedicados ao serviço postal em terras brasileiras, conhecer Correios por aí é quase uma fascinação. Outros empregados dos Correios me entenderão, com certeza.

Caminhei rumo a entrada da pequenina e rústica agência postal já bastante emocionada. Dentre os destinos que paquerava na América do Sul, Ushuaia sempre teve um lugar especial no meu coração em grande parte por causa do Correio do Fim do Mundo. E lá estava eu, a poucos metros de entrar na unidade com o último serviço postal regular do mundo (mais pro Sul só tem a Antártida!!!).

Ao transpor a porta, a sensação era a de ter mergulhado em outra dimensão. 

As paredes todas cobertas por fotos, postais, souvenir e adesivos de viajantes do mundo todo que por ali passaram, conferiam ao pequeno ambiente um colorido especial, enquanto alguns aquecedores lutavam para manter o ambiente em uma temperatura agradável enquanto o vento lá fora era cortante mesmo no verão. Que lugar acolhedor! 




Lancei o olhar para o fundo do ambiente, procurando ansiosa pelo carteiro do fim do mundo e lá estava ele, atrás de um minusculo balcão: Carlos Delorenzo e a batida ritmada da carimbação que nós, empregados dos Correios, conhecemos tão bem: plunct plact, plunct plact.

Aí veio mesmo a confirmação de que havia passado para outra dimensão: com seu bigode e suas roupas características, emoldurado por fotos de Che Guevara e Eva Perón, Delorenzo simplesmente parecia saído de um filme de época, casando perfeitamente o personagem e o cenário. E se esse espaço-tempo tivesse uma trilha sonora, com certeza seria o "carimbador maluco" de Raul Seixas.

Diga-se de passagem, é preciso mergulhar a fundo na história de Carlos, que está a frente dessa unidade postal há mais de 20 anos. Anarquista assumido, ele que já foi maestro em Buenos Aires decidiu abandonar a vida na capital argentina para encampar a criação do correio do fim do mundo, que outrora ficava localizado no meio do canal Beagle e era utilizado por navegantes e aventureiros para enviar correspondências. Com o avanço da tecnologia, a prestação do serviço perdeu força. A unidade postal migrou então para Isla Grande, o que favoreceu o acesso e acabou convertendo o correio em um dos pontos turísticos mais visitados em Ushuaia.

Na pequena fila, eu aguardava ansiosa a minha vez de carimbar o passaporte com a famosa estampa, cujo valor simbólico é de 3 dólares. 

Ao chegar ao balcão, coração acelerado. Sim, eu estava diante do carteiro do fim do mundo. Arriscando meu melhor espanhol, contei a ele que também trabalhava nos Correios no Brasil enquanto ele ajeitava a página do passaporte para carimbar. Ele ergueu os olhos, me fitou silencioso e continuo o trabalho, colando com carinho uma estampa adesiva que carrega sua imagem e o carimbo que preenche o restante da página. Ao finalizar, virou-se e me presenteou com um mimo e um sorriso, carinho típico de companheiros de profissão que se reconhecem.

Agradeci e cedi lugar para os demais turistas que aguardavam sua vez de obter o carimbo. 

Confesso que saí emocionada e chorei (sou meio manteiga mesmo, me julguem rs). Ficou curioso para conhecer a estampa do passaporte? Clique aqui, tem post especial sobre os carimbos encontrados em Ushuaia.

Caminhei ainda por um tempo na enseada curtindo a paisagem antes de seguir para a próxima parada: a lendária placa do final da Rota 3. Vejo você na próxima parada: a baía Lapataia.



















sexta-feira, 15 de maio de 2020

Meu encontro com Deus no Lago Fagnano

A fina névoa que tingia o céu de Ushuaia naquele 4 de março se fez presente assim que cruzei o limiar da porta da casa alugada no fim do mundo literalmente.

Estava esperando pela van que nos conduziria ao Lago Escondido e Fagnano, um passeio que confesso, fui mais por causa do meu irmão do que por curiosidade própria.

E é justamente quando não temos expectativa nenhuma, que as coisas acontecem.
Subimos na van. Recepcionados por uma guia falante, seguimos em busca de outros turistas para finalmente pegarmos a Rota Nacional 3.

Uma chuva calma lá fora. Uma inquietação aqui dentro. Tempo cinza lá fora. Tempo cinza também aqui dentro.

Avançando pela estrada sinuosa chegamos ao Paso Garibaldi, um mirante que creio eu, em dias de céu aberto, seja possível avistar o Lago Escondido. Naquele dia, porém, o lago realmente estava bem escondido pelo nevoeiro.

Ao retornar para van depois de uma tentativa frustrada de fotografia no mirante e já bem ensopada pela chuva, meu ânimo ia se abatendo. O passeio que já não prometia muito, ia ladeira abaixo no rol das expectativas.

Meu irmão tentou me animar. Recordou-me que o próximo Lago ficava na falha geológica chamada Magalhães-Fagnano, uma das mais ativas do mundo, registrando entre 10 e 12 mil sismos por ano, argumento este que ele julgava importante para animar uma geógrafa.

Lago Fagnano
Então chegamos ao Fagnano, também chamado Lago Khami, que divide a Argentina e o Chile.E como num passe de mágica, o sol se fez presente. E Fagnano então tomou a forma de um grande espelho, silencioso, refletindo a paisagem ao redor. Curioso pensar que aquela superfície tão calma repousa sobre uma tumultuada estrutura geológica. Assim também somos nós, aparentemente serenos por fora enquanto por dentro somos sacudidos violentamente pela inquietação dos pensamentos.

Ainda olhando para o Lago, entrei na Estância La Carmen, um ponto de apoio ao turista. No interior, encontrei uma lareira onde pude me aquecer.

Capela da Virgem da Medalha Milagrosa
Logo a guia nos convidou para um passeio às margens do lago. Decidi ficar. Enquanto o grupo se afastava, resolvi explorar o bosque em frente ao lago e logo encontrei um senda que subia uma pequena encosta. Segui o caminho. Alma agitada. E foi aí que algo aconteceu... no final da pequena subida encontrei uma capela de uma virgem, a Virgem da Medalha Milagrosa.

Há pessoas que se encontram com Deus em uma cabana, algumas se encontram nos templos, outras quando seguram seus filhos nos braços pela primeira vez. Eu me encontrei com Deus ali, no meio daquele bosque. Ao me dar conta, já estava de joelhos no chão úmido, sob o peso de tantos questionamentos que vinha trazendo dentro de mim. E enquanto as lágrimas corriam, toda dor parecia ir embora aos pés daquele pequeno santuário. Quando estamos angustiados, já estamos fazendo uma prece sem perceber.

Fiz as perguntas que precisava fazer, ainda que Deus, obviamente, não precisasse respondê-las. Parte do processo da fé passa exatamente por acreditar em coisas que não necessariamente são palpáveis. E sentada no chão, fui invadida por uma paz que há tempos não sentia. Seria possível, afinal, ter que ir até o fim do mundo para viver uma experiência tão espiritual como essa?

Fato é que quando perguntamos para Deus, precisamos não apenas estar atentos para as respostas que podem chegar de maneiras sutis, como também estar preparados para elas.

Sentada às margens do Fagnano
Me despedi da capela e voltei às margens do lago, onde fiquei por um bom tempo contemplando as pedras arredondadas do chão. Logo o grupo chegou e me reuni a eles, para irmos avistar os castores.
Partia, naquele 4 de março me sentindo estranhamente mais leve. E na resposta de Deus, não houve demora. Chegaria sutilmente 4 dias depois,  tocando meu coração sob a forma de prosa.

Castoreira
Quer saber como chegar ao Lago Fagnano?

Há duas opções: você pode contratar um passeio convencional que segue pela Rota Nacional 3 até o Lago ou então fazer a opção off-road que vai pela antiga Rota 3, com um pouco mais de adrenalina.
O passeio é tranquilo para idosos e crianças.

Caso opte por fazê-lo na parte da tarde, será possível tentar o avistamento de castores, que ficam ativos tão logo o sol começa a se por no horizonte.



domingo, 10 de maio de 2020

Última chamada para embarque no Trem do Fim do Mundo...vem comigo!



Estação Austral Fueguina
O prédio charmoso de madeira  emoldurado por um céu azul perfeito denunciava que havíamos chegado a Estação Ferroviária Austral Fueguina. Um ator encenando um prisioneiro nos aguardava ao passarmos pela catraca rumo a uma das locomotivas fumacentas que nos aguardavam.
Estávamos embarcando em uma viagem no tempo, onde o charme e o glamour do prédio logo atrás de nós deixariam de existir para dar lugar a história real do Trem do Fim do Mundo.
O percurso de aproximadamente 7 quilômetros em meio a uma paisagem cinematográfica quase nos fazia esquecer das centenas de prisioneiros que fizeram esse caminho por tantos anos para trabalhos forçados no bosque fueguino. O áudio das cabines recontava em detalhes essa história, e enquanto ouvíamos, se estreitássemos bem os olhos rumo ao horizonte, nossa mente quase seria capaz de recriar as cenas contadas em nossos ouvidos, enquanto a cadência monótona do trem nos levava em um transe hipnótico bosque adentro.
Durante os anos em que o Presídio do Fim do Mundo esteve em atividade em Ushuaia, toda madeira utilizada no complexo penal - fosse ela para construções, móveis, lenha para aquecimento - era proveniente do bosque e obtida por meio do trabalho forçado dos prisioneiros, que chegavam ao local pela mesma ferrovia que percorríamos hoje.
Abro uma aspas para o forçado visto que a vida no interior do Presídio do Fim do Mundo era tão penosa, que grande parte dos prisioneiros preferiam os pesados trabalhos braçais no bosque a permanecerem reclusos nas pequenas e gélidas celas. Inclusive, uma das penas por mau comportamento era justamente a proibição de ir ao bosque trabalhar.
Trem do Fim do Mundo
No trajeto, passamos pela Cascata La Macarena com uma pequena pausa para curtir o local. No final do trajeto, o passageiro tem a opção de retornar com o trem para a estação ou prosseguir em um transfer, caso tenha comprado um pacote que contemple outros pontos turísticos que ficam no bosque, como o Correio do Fim do Mundo por exemplo  - aqui já dou spoiler que vai ter texto sim sobre isso!
Por uma característica particular minha de mergulhar com a alma na história do lugar, confesso que cheguei ao fim dos trilhos com um sentimento de tristeza. Ao desembarcar, olhei para trás e fiquei observando a manobra da locomotiva para retornar a estação. O local belíssimo parecia destoar de uma história tão sofrida para tantos que por ali passaram e eu me flagrei bastante pensativa.
Um silêncio desceu sobre mim, quebrado apenas pelos sons dos cascalhos sob meus pés e do vento cortante que passava por entre as árvores do bosque do Parque Nacional da Terra do Fogo.
Era hora de seguir em frente, rumo ao último serviço postal regular do mundo.


  • Como fazer o passeio do trem do fim do mundo?

Você pode tomar um táxi ou um transfer em Ushuaia e se dirigir até a Estação. Os tickets de embarque podem ser adquiridos na hora ou então, antecipadamente pela internet. Eu comprei o meu pelo Decolar.com e é só chegar no guichê, apresentar o voucher do Decolar, que eles emitem o ticket para embarque na hora. O preço pelo Decolar estava mais em conta do que comprando na estação.

Se você deseja conhecer outros pontos turísticos do Parque Nacional da Terra do Fogo, recomendo comprar o passeio que contempla o trem + Correio do Fim do Mundo + Baía Lapataia (final da rota nacional 3). Fizemos o passeio com a Pinguinos Expediciones. Ainda assim, o ticket do trem deve ser comprado a parte pois não está incluso no pacote.